
"Acabou o Carnaval pra mim há muito tempo”
Primeira mulher a entrar na ala de sambistas de uma escola e com obras cantadas por gente como Gilberto Gil e Caetano Veloso, Dona Ivone Lara enfrenta problemas de saúde e dificuldades financeiras no subúrbio do Rio.
Yvonne Lara da Costa, ou Dona Ivone Lara, como é conhecida, é uma das principais sambistas do Brasil. Nos anos 60, foi a primeira mulher a entrar para a ala dos compositores da escola de samba Império Serrano, uma das mais tradicionais do Rio de Janeiro. Sua música mais conhecida, “Sonho meu”, em parceria com Délcio Carvalho, foi gravada com enorme sucesso por Gal Costa e Maria Bethânia. Outras obras suas também foram cantadas por nomes como Gilberto Gil, Beth Carvalho, Caetano Veloso e Paulinho da Viola. Como enfermeira, sua profissão paralela ao samba, da qual se aposentou em 1977, trabalhou em vários hospitais psiquiátricos. Trata-se de uma história e tanto. Nada disso, porém, fez com que Dona Ivone chegasse aos 87 anos, sua idade atual, com uma vida tranquila.
Calotes
Em novembro do ano passado, ela perdeu o filho mais velho, Odir, de 59 anos, por complicações decorrentes do diabetes. Sobre isso, ela prefere não falar. Apenas suspira e limita-se a duas palavras. “Tenho saudade”, diz, com os olhos cheios d’água. O sorriso espontâneo só surge quando empunha o cavaquinho, companheiro de muitas composições. Viúva desde 1975, dividia com o filho uma casa humilde em Inhaúma, no subúrbio do Rio. Com a morte dele, passou a morar com o outro filho, Alfredo, de 58 anos, em Oswaldo Cruz, também no subúrbio. Na residência, confortável, porém simples, além dela e do filho moram a nora, Eliana, os dois netos, André, de 26, e Jorge Augusto, de 28, a mulher de Jorge e o filho do casal, de 7 meses. Lá, a sambista possui um quarto para dormir e outro, minúsculo, onde estão seus troféus e fotos antigas de shows. O único luxo do lugar é uma TV de 42 polegadas, comprada com o dinheiro que ela recebe de direitos autorais, cujo montante mensal não revela, mas que garante ser pouco.
É uma realidade que não combina com a sambista de outrora, que participou do badalado Festival de Montreux, na Suíça, em 2000 e em 2002 e que, nos velhos tempos, trazia joias, perfumes e presentes para toda a família quando voltava dos shows no exterior. “Cantei na França, nos Estados Unidos, na Suíça e até no Japão. Trouxe da Alemanha o enxoval completo para o meu neto André. Ganhava bastante dinheiro e comprava roupas, coisas muito boas”, afirma Dona Ivone. Segundo ela, a dificuldade financeira atual é fruto de calotes que recebeu no passado. “O sujeito, quando é ordinário, é safado mesmo. Apanha o dinheiro, bota no bolso e diz que não recebeu. Tive um empresário que me dizia um preço, mas cobrava outro.”
Resignada, Dona Ivone garante que não tem mágoa de ninguém, mas reclama da falta de ajuda. “Não tive madrinha ou padrinho. Só de batismo. Surgi antes, chamava um monte de gente para cantar comigo. Ajudei muita gente, mas não acontece nada para mim.” Também se queixa do fato de estar sem gravadora. “Quando não temos gravadora, ficamos no rol dos esquecidos”, afirma. O último CD lançado por ela, que continua compondo até hoje, foi Vida Que a Gente Leva, em 2004.
Há alguns anos, Dona Ivone perdeu parte da visão por causa de um glaucoma no olho esquerdo. A vista direita também está comprometida pelo mesmo problema. E, embora precise de ajuda para se locomover, ela escreve com a letra bem desenhada e assina documentos sem problemas.
Chega de viajar
Nem o Carnaval a anima mais. Há quatro anos ela não põe os pés na avenida. Neste ano, foi convidada para sair no carro de Iemanjá, na Império Serrano, mas recusou. “Fazer o que na avenida com 87 anos? Acabou o Carnaval para mim há muito tempo”, afirma. O calor e o sacrifício de colocar uma fantasia pesada são apontados como desculpas para sua ausência. “Não gosto de sair em carro, sempre saí no chão. Achei que já era hora de me afastar.”
Entretanto, o trabalho não pode parar e, nos dias de folia, ela vai fazer shows em Maricá, pequena cidade localizada na Região dos Lagos, no Rio. Sim, os convites para apresentações aparecem, ainda que esporadicamente. Recentemente, recebeu proposta para se apresentar no exterior, mas não revela onde. “Ainda não sei se vou aceitar. Não estou com vontade de aceitar nada. Chega de viajar!” No momento, a única realização profissional que pretende levar adiante é o lançamento de um DVD, com a participação de amigos como Beth Carvalho e Martinho da Vila. “Mas é caríssimo, tenho que conseguir patrocínio”, afirma, dizendo ser esse o único projeto que a faz vibrar.
Fonte: Luciana Barcellos e André Arruda
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