
Quando cheguei em Oswaldo Cruz, o quintal ainda estava vazio. Cheguei cedo, eu e uns amigos. Marquinhos de Oswaldo Cruz fez questão de nos apresentar à dona da casa, Tia Surica, uma mulher que transborda simpatia e espontaneidade, componente da Velha Guarda da Portela. Perguntamos se ela precisava de ajuda. "Vocês vão ajudar muito se saírem da minha cozinha. Muito homem junto aqui não dá certo!" disse, sorrindo. Acatamos na hora e voltamos pro quintal, onde começamos um animado papo com a estrela do dia. Marquinhos é ótimo pra conversar, vai emendando um assunto no outro e nos deixa bastante à vontade. Pegando seu disco, começa a falar das fotos no encarte. Em uma delas, nos mostra seu avô dentro de uma bóia de pneu, cercado de crianças, se banhando em uma praia da Ilha do Governador. Isso, é claro, em uma distante época onde se podia tomar banho ali.
Eis que, no meio do papo, o portão lá no fundo se abre. A figura não me é estranha, mas demoro a reconhecer o "seu" Casemiro, titular da cuíca na Velha Guarda. "Ele é sempre um dos primeiros a chegar", lembra Marquinhos.
Aos poucos, o quintal de Tia Surica vai sendo ocupado pelos convidados, dentre sambistas, jornalistas e amigos, todos prestigiando o jovem compositor oriundo da academia do samba de Oswaldo Cruz. Marquinhos recebia todos com o maior carinho, não escondendo sua felicidade em ver cada um deles ali, naquele que era o seu dia. O Marcos Souza e o pessoal da Rob Digital chegam com o som e logo, logo lá estava Uma Geografia Popular rodando no aparelho. O ambiente é invadido pelas belas composições que compõem o cd.
No meio dos jornalistas, Marquinhos de Oswaldo Cruz contava histórias de sua vida e de seu cd. Em volta, nas várias mesas, estava presente uma parte da história do samba. Tia Eunice, Jair do Cavaquinho, Guaraci, Walter Alfaiate, Ivan Milanez, Zé Luiz, Luís Carlos Máximo, Tia Doca, Casemiro, Argemiro... Sobre este, aliás, Marquinhos conta que o conheceu por causa de uma música que o Zeca Pagodinho queria gravar. Argemiro foi atrás do Marquinhos pra que fizesse o banjo na gravação da fita. Apesar de ainda "arranhar" no instrumento, ele fez assim mesmo. Nessa hora ele para a narração, saca de
seu cavaquinho e começa a cantar: "Já não vejo os velhos sambistas / Os verdadeiros artistas de muitos anos atrás / O samba anda meio deturpado / Eu também estou mudado / Mas não os esqueço jamais / Em louvor a nova geração / A que faz do samba o seu bastão / Embora um pouco diferente / Mas faz vibrar o coração da gente..." E arremata, empolgado: "Eu conheci o "seu" Argemiro por causa dessa música!"
Almoço na mesa, o pessoal cai dentro de uma deliciosa bacalhoada, regada a cerveja gelada! Pra quem quisesse, ainda tinha o tradicional frango com quiabo. Não agüento com esses momentos de incerteza e, na dúvida, provei dos dois pratos...
Após o almoço, fui parar na barraca das bebidas. Imbuído de um forte sentimento de solidariedade, atendi o apelo de um amigo que não estava dando conta. Acabei na área mais privilegiada do lugar: além de estar perto das "geladas", ainda ficava bem de frente à roda que começava a se instalar. Na falta do tantan, um balde resolveu o problema e o samba comeu solto. Ali, naquele espaço, vi Walter Alfaiate versando com Marquinhos de Oswaldo Cruz, Ivan Milanez e Renatinho Partideiro. De repente, um verso pra moça de azul que acabara de chegar: era Dorina, que logo se incorporou à roda e, com Tia Surica e Tia Eunice, engrossou o coro. Para a alegria dos fotógrafos presentes, Casquinha fez pose ao lado de Marquinhos de Oswaldo Cruz e os dois cantaram "Meu Bairro", samba de Casquinha que está no cd Uma Geografia Popular: "Aceite os conselhos meus / Vem morar em Oswaldo Cruz / Vem gozar as delícias / Mandadas por Deus".
No final daquele dia, me sentia embriagado. Não só pela quantidade de cervejas que bebi, mas pelo que vi e ouvi. Apesar de ser Vila Isabel, tenho que concordar com os versos do Chico Santana: "Samba bonito na Portela é que tem / Academia do samba é lá também..." Um disco como o do Marquinhos merecia uma celebração como esta. O calor de mais de 40 da vizinha Madureira só não superava o calor das pessoas que ali estavam, no bater das mãos, no entoar das canções, no compasso do arrasta-pé.
Tudo bem, vou cair no lugar-comum. Mas não pude deixar de lembrar do samba de Monarco, na sua "Homenagem à Velha Guarda": Juro que fiquei boquiaberto, nunca me senti tão perto da Portela dos tempos atrás.
fonte: Fernando Peixoto
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