Vai, Ratinho... Vai vadiar por aí...


Perdemos o nosso Rato.

De todos os sambistas que conheci, dois deles tive a ventura de acompanhar bem de perto: Camunguelo e Ratinho. Era a certeza de estar convivendo com dois artistas do povo naquilo que esta definição pode ter de mais preciso e valioso. Cada um de seu jeito. Camunguelo já foi antes e já escrevi o que queria sobre ele, mesmo tendo sido tão pouco.

Ratinho poucas vezes se apresentava. Sabia que não cantava bem.

Ao que eu saiba teve dois "desalinhos" na vida artística. Um deles esse, não cantar direito. Boas mesmo eram aquelas já agora saudosas rodas de samba da Toca do Rato, em sua casa, onde ficava à vontade, de bermudas e chinelos, cantando as pérolas que compunha no convívio de seus admiradores mais próximos.

Nas poucas vezes em que se apresentava, pelo menos em algumas, me convidava, na condição de seu admirador absoluto, para fazer a introdução de seus shows. E como eu gostava de fazer isso. Eu dizia para a platéia que tinha absoluta certeza de que, muitas vezes naquela noite, muitos dos ali presentes exclamariam baixinho: "Puxa, mas este samba é dele também?" E era assim que era.

Talvez tenha sido o compositor mais presente a cada um dos discos da carreira de Zeca Pagodinho no momento exato em que sua carreira ascendia para o que é hoje. E assim o grande público muitas vezes não chegava a identificar a autoria de cada sucesso de cada disco muitos em parceria com Monarco. A cada pérola ouvia-se o baixo rumor que eu previra, sempre com um sorriso de surpresa. Eu adorava cada um desses momentos; adorava mais ainda em ver aquele sorriso quase irônico do Rato, como se dissesse: "o quê que vocês querem que eu faça?"

Incontáveis sucessos. Mais incontável ainda a quantidade de sambas prontos sem gravação. Este o outro azar de Ratinho na vida: seu afastamento de Zeca Pagodinho. Um tremendo azar, primeiro pelo abalo em uma relação tão sólida, de décadas, iniciada quando os dois jovens era da "pá virada", compondo e cantado sambas por aí pelas madrugadas dos subúrbios cariocas. Depois pela ausência de novos sambas nos novos discos - agora CD’s- dos quais Ratinho ficava de fora.

No mundo do samba cada vez mais sem intérpretes, cada vez mais com sambistas cantando suas próprias composições, cada vez mais sem controle da arrecadação de direitos autorais, a vida de Ratinho tomou outro rumo.

Bacharelou-se em direito para entender melhor e defender a comercialização de sua obra. E aí viu que o "buraco era mais em baixo", entendia a cada vez mais por que o samba ia bem e o sambista ia tão mal. Entristecia-se com a desunião da gente do samba. Muita gente próxima deixou de ser tão próxima. Malandro que era, compreendia: a vida é que era assim. Nunca me falou direito o que houve entre ele e seu antigo companheiro.

Agora Ratinho vai embora.

Sambista completo, de meio de ano e de carnaval. Centenas e centenas de sambas gravados. Sete sambas escolhidos por sua escola. Inúmeros outros por aquela infinidade de blocos da região de Pilares, Piedade, Inhaúma. Estandarte de ouro em 1978 com a Festa da Uva. Uma grande perda. Tantos planos, tantos projetos, tanto ainda para deixar para nós...

Um baú de sambas inéditos, os últimos com o grande Elton Medeiros que certamente os trará para nós. Outros ... sabe-se lá quantos e com quem. Uma antologia de "causos" vividos por ele em meio a sambistas, em vias de catalogação para publicar. Um calhamaço de memórias suburbanas onde escondia e revelava tantas de suas saudades e recordações de menino português vindo à luz para o mundo pelas ruas de Terra Nova e Pilares.

Deixa na história um samba inesquecível, antológico naquilo que o carnaval brasileiro tem de mais original, mais precioso, e mais ameaçado em sua essência: o samba enredo. Era o ano de 1982, a escola de samba de seu bairro, a Caprichosos, "trazia" o enredo sobre a feira- livre, do carnavalesco Luis Fernando Reis. Ali uma aula de carnaval, pelo menos daquilo que para mim é o carnaval das escolas de samba no que ela tem de maior valor artístico, cultural. Digo "para mim" porque é esta a minha visão do carnaval e que cada vez mais vejo à distância: o povo brasileiro contando sua própria história, suas aventuras, anseios, mazelas e orgulhos.

A feira livre que o carnavalesco desejou, concebeu, desenhou e armou na pista obteve naquele samba a mais completa possibilidade de concretização musical temática e com o "espírito e alma" de uma escola que tanto desejamos ver de volta. Uma escola que tanta falta faz ao carnaval, um enredo que tanta falta faz no carnaval. Um samba que tanta falta faz no carnaval.

Ali o cenário carioca da feira encontrava a riqueza dos personagens da freguesa Lili e do feirante seduzido por ela. Nada mais carioca, nada mais brasileiro, nada mais moderno, vivo. Irreverente, carnavalesco, atual. Dei mole. Conversei muito com Ratinho sobre essas coisas. Agora vem a sensação de ter conversado tão pouco.

Ouví-lo contar de seus parceiros, lendários e já idos, Mijinha, Alcides, Argemiro, Manacéia, ivancué, Walter Rosa, todos da Portela, e mais Nonô do Jacarezinho, Anescarzinho e Geraldo Babão do Salgueiro, Guilherme de Brito, Nelson Cavaquinho e Jurandir da Mangueira e sua imensa admiração por seu Carlos (Cachaça). Do orgulho de ser definido como "sambista único" por Aldir Blanc na capa de seu disco.

Lamento a dor de sua família, dor que é nossa também. Mas fico feliz por seu nome, por sua história, pela sua vida. Por tudo que você deixou aqui para nós. A saudade ficará com sua gente, a sua memória nas rodas de samba desse país imenso, tão original.

Tão talentoso e único quanto você que agora vai.

Vai, Ratinho... vai vadiar por aí.

Fonte: Luis Carlos Magalhães

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