Trem do Samba



Trem e música: componentes tradicionais das comunidades negras nas Américas. Confirmando essa tradição, no início do século XX, e fugindo da perseguição imposta pela elite às práticas simbólicas negras, Paulo da Portela e seus companheiros de escola reuniam-se no trem (que foi transformado em "sede social"), na volta do trabalho, cantando e tocando samba.

Entre os temas mais cantados na música popular podemos destacar os bairros cariocas. Vários exemplos nos vem à memória: Valsa de uma cidade (Antônio Maia e lsmael Neto), Copacabana (J. Barros A. Ribeiro), Tom 74 (Tom Jobim! Vinicius de Moraes), Garota de Ipanema (Tom Jobim! Vinícius de Moraes). Ao cantar uma parte do Rio de Janeiro, essas músicas demonstram que nossa cidade se apresenta "partida", com territórios bastante delineados, em uma tentativa de impossibilitar o trânsito e o diálogo entre os diversos bairros, buscando, dessa forma, a interdição da livre circulação de bens simbólicos. Porém, o Rio de Janeiro é um signo que comporta vários territórios, várias culturas e saberes em uma busca de trocas simbólicas de informações. O Trem do Samba partiu de uma necessidade de dar visibilidade a cantores e compositores, culturas e espaços que não são divulgados pelos meios de informação hegemônicos.

Tantos compositores, tantas músicas cantando esse bairro que fica distante do mar e da indústria cultural. Esse movimento cumpriu o seu papel, quando alguns de seus membros se dirigiram para a criação da Associação de Moradores de Oswaldo Cruz (AMOC) e do Centro Profissionalizante Paulo da Portela, investindo em um trabalho de recuperação da auto-estima dos moradores do bairro através da produção musical ali realizada. Mas que história essa, tão desconhecida que esse bairro vem ao longo do tempo construindo? No início do século XX, dois grandes festeiros foram reconhecidos como lideranças populares por suas casas terem se tornado grande centro de difusão do samba carioca: D. Ester e Seu Napoleão. Este espaço era freqüentado pelos "bambas' do Estácio (lsmael Silva e Brancura), que lá trocavam informações musicais com os sambistas do subúrbio. Um depoimento feito por Cláudio Bernardo (sócio fundador da Portela) nos informa que durante uma dessas festas, Paulo da Portela (compositor) teve sua entrada proibida. O argumento utilizado se relacionava aos seus trajes, um tanto comum entre os sambistas da época: chinelo charlote, camiseta e para acompanhar uma navalha. A partir desse momento, Paulo da Portela passou a se vestir com "pés e pescoço ocupados", isto é, com sapatos e gravata. Não só ele, mas outros sambistas de Oswaldo Cruz fazem desses trajes seus uniformes. Apesar da tentativa de se desassociar da marginalidade, o samba continuava perseguido. Para fugir da repressão, Paulo da Portela após um dia de trabalho (formal) se reunia no trem com outros sambistas, fazendo desse transporte a sede da sua escola de samba (GRES Portela). Podemos, então, concluir que a primeira grande liderança do samba carioca foi Paulo da Portela. Porém faz-se necessário destacar que Paulo, além de líder, é também (e principalmente) um grande compositor. Dando um salto na história do bairro de Oswaldo Cruz, não devemos esquecer de outra grande liderança : Antônio Candeia Filho. Este, já aos 17 anos foi vencedor de samba enredo na escola de samba de Oswaldo Cruz. Seu destaque deve-se à sua luta em torno da Cultura Carioca.Tal como Paulo da Portela, o respeito pelo mestre Candeia se deu, também, em função da qualidade de seu trabalho como compositor: "Jardim do passado, flores mortas pelo chão, pétalas sementes de paixão".



Em 1991, Marquinhos de Oswaldo Cruz (cantor e compositor portelense) vai também utilizar o trem como um espaço para reunião de sambistas, em uma tentativa de superação da ordenação do espaço cultural e musical da cidade. Também fugindo da repressão às vozes e ritmos negros, Marquinhos e um grupo de sambistas refazem no trem a rota da diáspora dos descendentes de escravos expulsos do centro da cidade. Buscavam mostrar à cidade, a música que era produzida no subúrbio e, em especial, no desconhecido bairro de Oswaldo Cruz.

Após participar de várias rodas de samba no subúrbio, tal como, Paulo da Portela, tem a idéia, contando com a colaboração de outros músicos e moradores do bairro, de utilizar o trem para levar o samba através dos seus trilhos.Esse movimento tem sua primeira vitória quando Marquinhos de Oswaldo Cruz e Juarez Barroso conseguem indicar a Velha Guarda da Portela para recebimento da Medalha Pedro Ernesto.

Toda essa luta foi acompanhada de descrédito de muitos moradores que consideravam essas questões menos importantes . Para muitos, Marquinhos era um indivíduo alienado, que só falava de samba. Não entendiam que uma comunidade se mantém através da sua memória e que a memória do bairro de Oswaldo Cruz sempre esteve ligada a música tradicional. Um vagão de trem continuou a ser utilizado ainda em 1992. No entanto, foi em 1996 que o "Pagode do Trem" passou a comemorar o Dia Nacional do Samba. Assim, Marquinhos inventa uma forma original de celebrar o dia 02 de dezembro, relembrando a trajetória do povo negro que com a reforma Pereira Passos, foi expulso dos lugares nobres da cidade para os subúrbios e morros.

Essa tradição se mantém até os dias de hoje: é o PAGODE DO TREM, movimento em comemoração ao Dia Nacional do Samba (2/12), que sai da Central do Brasil, reunindo em rodas de samba espalhadas pelo bairro de Oswaldo Cruz um público estimado em cerca de 60.000 pessoas e com a presença de sambistas de primeira (Beth Carvalho, Velha Guarda da Portela, Império Serrano e da Mangueira, Renatinho Partideiro, Luiz Carlos da Vila, lvan Milanez, Noca da Portela, Walter Alfaiate, Nelson sargento, Noca da Portela, Mauro Diniz, Dudu Nobre, Almir Guineto, Arlindo Cruz etc).Em 2006, foram cinco trens lotados da Central do Brasil até a estação de Oswaldo Cruz. Foram 30 vagões com muito samba. Em cada vagão foi montado um grupo que representava uma roda de samba com importância para a cidade, assim todos os passageiros curtem o melhor do samba brasileiro, inteiramente grátis.

Desse movimento, outros espaços foram construídos e transformados em referências para o samba. Em 1996, Marquinhos de Oswaldo Cruz e um grupo de sambistas (Renatinho Partideiro, Ivan Milanez e Charles da Viola) vão para a deserta Lapa, com a mesma intenção: divulgar o samba dos subúrbios cariocas. Tocando sob os arcos, eles trouxeram de volta à região o som da batucada. Hoje, se a Lapa está lotada de bares e casas noturnas regada à música regional, devemos a esses desbravadores que reuniam semanalmente quase mil pessoas.



Um outro fruto desse movimento está localizado nas escolas de samba. Tempos atrás, se alguém quisesse ouvir sambas de terreiro e partido alto não iria a uma quadra de escola de samba. Com a criação do Pagode da Família Portelense em 2003, por Marquinhos de Oswaldo Cruz, que convidou também a Velha Guarda da Portela a participar, a quadra da escola volta a ser um espaço para se ouvir todos os tipos de samba e não apenas samba de enredo. O melhor de tudo isso foi a construção de novas redes, já que hoje a Mangueira, Império Serrano, Vila Isabel, Estácio, Rocinha também realizam rodas de samba, reunindo suas comunidades para manter e produzir samba.

Para os desconhecedores das formas de expressão negro-brasileiras todas essas atividades são apenas festas. Sim, são festas. E essa é a forma que a população negra possui de manter sua memória, se conectando com seus ancestrais, mantendo os vivos, com muita alegria. É dessa forma que as comunidades de samba garantem a continuidade de suas práticas simbólicas: através de formas de ação inequivocamente políticas. Ainda nos dias de hoje, as festas, os pagodes e as rodas de samba são algumas das formas que as comunidades encontraram de se colocarem no mundo e manterem a memória dos seus grupos.

Além de tudo isso, o Pagode do Trem é um estímulo a quebra do muro invisível que parte essa cidade. Faz com que os moradores possam conhecer a hospitalidade e alegria do povo suburbano, que, na maioria das vezes só é apresentado como violentos e selvagens.

Por tudo isso, convidamos toda a cidade para visitar Oswaldo Cruz e conhecer as formas de expressão da população negra, que fazem dessa celebração um exercício de memória, transformando o bairro em um pedaço da África no Brasil.

Fonte: Marquinhos de Oswaldo Cruz

Um comentário:

  1. Muito bom o seu relato sobre a historia do Trem do Samba.

    Mozart Chaflun
    Fundador do CCCP Paulo da Portela e Presidente da AMOC

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