Onde nasceu o samba

Pesquisador pernambucano sustenta que o samba não é negro e muito menos carioca. Seria nordestino e indígena e teria vindo dos primórdios da colonização

Ressuscitem Donga, Luís da Câmara Cascudo, Mário de Andrade. Tragam lá de cima também Sílvio Romero, Fernão Cardim, Pereira da Costa, Euclides da Cunha. O pesquisador Bernardo Alves, 49 anos, tem uma conversa boa para levar com eles e outros mais que por acaso desejem à Terra descer. Trata-se de um ajuste de contas com a história da música brasileira. Para os intimados acima e os novatos no assunto, estejam de acordo ou não, Bernardo oferece uma clara teoria: o samba não é negro, nem carioca; o samba nasceu caboclo, no sertão nordestino. E, para que não reste dúvida, ele mata a cobra e mostra o pau, através das provas reunidas na pesquisa que empreendeu, intitulada A Pré-História do Samba.

Desde criança, quando morava em São João de Garanhuns, trazido bebê do interior de São Paulo, Bernardo ouvia o pessoal do sítio dizer que “ia a um samba”, que os músicos “faziam um samba”. Depois, morou um tempo no Sertão do Cariri e lá também ouvia samba. E aquele samba não tinha nada a ver com o estilo que assim se convencionou chamar, o das batucadas cariocas. Começou a se perguntar o que havia de estranho naquela discrepância.

Bernardo Alves chegou ao Recife em 1969, durante o Regime Militar. Pensando em ingressar na faculdade – Letras ou Música –, foi fazer o supletivo, mas logo desistiu do ensino formal. Aborreceu-se quando o professor de História disse que em Cuba houvera um golpe e aqui se vivia a Revolução. Ele nunca iria acreditar e tampouco escrever aquela lição escolar. A decepção com o conhecimento acadêmico empurrou Bernardo Alves para o autodidatismo, fincado na certeza de que quem busca a verdade e quer descobrir coisas novas não pode ir somente pelos caminhos já trilhados. A pesquisa que empreendeu sobre a origem do samba testemunha o quanto acredita na própria sentença. Faz vinte e seis anos que Bernardo escarafuncha o samba. Morava em São Paulo e lia O Termo Samba, do maestro Batista Siqueira, quando resolveu saciar a curiosidade pessoal, respondendo às indagações que se fazia quanto à natureza do ritmo pelo acesso a documentos, livros, fontes primárias. Entre 1977 e 1979, de volta ao Recife, exibia aos amigos os primeiros escritos, anotações e argumentações. Eles as recebiam com entusiasmo, mas também com inevitável ceticismo.

Para quem se acostumara à história oficial de que o samba nascera negro e carioca, no começo do século 20, nas rodas da casa de Tia Ciata, das quais participaram Pixinguinha, Sinhô e Donga, entre outros bambas, e que sua primeira gravação, registrada em 1917, fora a música Pelo Telefone, de Donga e Mauro de Almeida, era difícil assimilar a idéia de que tudo começara com índios catequizados do Nordeste. Mas, para se ter uma idéia da diferença encontrada entre a história tornada oficial no século 20 e fontes anteriores, que a refutam, em A Pré- História do Samba, Bernardo identifica a presença da palavra samba em 1699, na Arte de Grammatica da Língua Brasílica da Naçan Kiriri, escrita pelo padre Luiz Vincêncio Mamiani, que vivia no alto sertão nordestino.

Mamiani foi um dos 100 autores consultados pelo pesquisador, que contou com o incentivo inicial do musicólogo Padre Diniz, membro da Academia Brasileira de Música e ex-professor do maestro Marlos Nobre. Como afirma Bernardo, mesmo não apoiando diretamente a tese, Pe. Diniz apoiou o pesquisador, abrindo-lhe sua rica biblioteca. Bernardo conta que, na seqü.ncia, passou anos no Arquivo Público, no Gabinete Português de Leitura. Leu os escritos de viajantes ingleses, portugueses, de pesquisadores africanos, indianistas e não teve preconceito em consultar pasquins e jornais alternativos, para os quais pesquisadores formados em geral torcem o nariz, por menosprezoà fonte. Foram vários carnavais com pranchetas à mão, para conversar com mestres de sambadas.

Para manter-se firme em sua tese, Bernardo teve não apenas obstinação em buscar fontes que a comprovassem, mas convicção de que estava no caminho certo. Teve a coragem de não desistir, de discordar de autores respeitadíssimos, considerados incontestáveis, de debruçar-se sobre jornais antigos – sobretudo do século 19 – e esperar até que pudesse, enfim, publicar o que coletou em livro.

Ele conta que logo no começo das pesquisas pediu a Gilberto Freyre para indicar uma literatura regional que contivesse dados relacionados ao samba daqui. Bernardo achou que o mestre não tinha entendido a história ou o estava desprezando, pois lhe disse para procurar Renato de Almeida, um dos que haviam ajudado a criar a confusão em torno da origem do samba. Bernardo compreendeu ao longo do tempo, também, que os pesquisadores de academia não dão atenção – e até boicotam – pesquisas autodidatas.

Do mesmo modo, está convicto de que a exclusão de menção quanto à origem nordestina do samba resulta de “interesses inconfessáveis”, pois “toda história malcontada serve a alguém”. Esta serviria aos cariocas, que capitalizam bem o fenômeno samba como atração para os setores do turismo e da indústria fonográfica. Bernardo alega que a história do samba foi escrita por autores hegemônicos do Sudeste e por africanistas, daí as argumentações geográficas e etnográficas em favor do Rio de Janeiro e dos negros.

Entretanto, a argumentação de Bernardo Alves não peca por bairrismo. No seu estudo, ele enfatiza a necessidade de se cumprir com o dever da verdade, comparando a situação do samba no Brasil com a do blues nos Estados Unidos, onde é sabido que o estilo nasceu em Nova Orleans e se consagrou em Chicago. Portanto, não desmerece a evolução do samba feito no Rio de Janeiro, mas enfatiza que quando muito este poderia ser chamado de samba de batucada, já que o samba original está mais próximo do coco e da embolada. Bernardo conta que o samba nordestino que chegou ao Rio de Janeiro foi acolhido por compositores de outra cultura musical, “pois o Rio, que na época, vivia do maxixe, da polca, do tango, da modinha e do lundu, começou a se ‘contaminar’, acharam de utilizar aqueles temas folclóricos dando-lhes uma roupagem à sua maneira, ou seja, amaxixada”.

Samba de pé-de-serra, samba-de-roda, samba de coco, coco sambado, samba de matuto, samba de caboclo, samba de velho, samba-de-almocreve seriam antecessores e precursores do samba carnavalesco carioca, do samba de partido alto, samba-enredo, samba-debreque, samba-canção, samba-choro.
Ancestral que – quem diria – levaria até a criação da bossa nova, esta, um samba cool de influência jazzística.

O fluxo migratório do samba, originário da nação cariri, teria seguido do interior ao litoral nordestino pelas mãos dos almocreves (comerciantes que viajavam sobre jumentos, sempre portando uma viola) e corumbas (mamelucos e caboclos que vinham do alto sertão para trabalhar na cana em épocas de seca). No litoral, teria recebido influências dos negros bantos e daí para o Sudeste como cultura da plebe – negros e índios escravizados, soldados vindos da Guerra do Paraguai. A pesquisa de Bernardo quer passar esses pontos a limpo e dizer que o samba tem uma nação como origem, a nação cariri.

Mesmo que a história oficial omita, os fatos aparecem em registros de alcance de massa, como na letra da música de João de Deus (compositor do conjunto Samba 5, do Rio, no disco Olinda, a cidade simpatia do Brasil, 1981), O Samba é Carioqueiro, da qual se extrai o trecho: “O samba é carioqueiro / Criou fama no Rio, em solo brasileiro / Há quem diga ele ser nordestino / Oriundo do Agreste e do Sertão / E que os índios por obra do destino / Já o dançaram batendo com os pés no chão / Mas não concorda a grande maioria / Os cariocas foram quem deu expressão / Trouxeram da África a magia / E no ritmo colocaram mais percussão.”

A composição de João de Deus não foi incluída na tese de Bernardo, mas nela há outras músicas, que afinam a história do samba. Lançada em 2002 em edição do autor com apoio da prefeitura de Petrolina, numa pequena tiragem de 400 exemplares, A Pré-História do Samba está com a segunda edição pronta. Nela, o autor pôde inserir a revisão ignorada na primeira edição, alterou a ordem dos capítulos e acrescentou outros, onde mostra os resultados conseguidos desde a publicação da primeira matéria jornalística sobre a tese, em 1981. Bernardo Alves mantém a loja Discos Raros no primeiro andar do número 370 da Praça Maciel Pinheiro, na Boa Vista, Centro do Recife, de onde irradia boca-a-boca suas idéias e promove rodas de debates e recitais de poesia.

Outras interpretações para o samba

O músico Fred Zero Quatro, líder da banda Mundo Livre S.A., não está preocupado com o sexo dos anjos. Se o samba nasceu no Recife, no Sertão do Cariri ou no morro carioca, a polêmica não lhe interessa, por lhe parecer complicada, além de pouco produtiva. Para ele, os registros históricos se diluíram.

“Já na época de Pelo Telefone o samba era um apanhado de várias tendências. Definir o estilo musical samba também é tarefa complexa. Os historiadores dizem que a salsa cubana não é um estilo musical, mas ganhou este nome nos clubes de dança norte-americanos, que colocaram um termo genérico para designar vários ritmos caribenhos. Também dizem que o choro não é estilo. Aqui mesmo em Pernambuco os mestres de maracatu rural discordam sobre Naná Vasconcelos reger, durante o carnaval, uma orquestra com vários grupos diferentes. Os que são contra alegam que cada maracatu tem sua tradição, sua batida, seu santo, mantendo como único elo o uso das alfaias. Lá nos Estados Unidos, um jornalista de Seattle deu o nome de grunge a estilos musicais heterogêneos. Essa discussão nos leva aonde?”

Mesmo sendo afirmativo sobre esse ponto, Zero Quatro acha positiva a busca de pesquisadores em desvendar os processos históricos da música brasileira, sobretudo para quebrar a hegemonia dos centros acadêmicos do Rio de Janeiro e de São Paulo, os mais influentes do país, que acabam defendendo registros locais e ocultando os de outras regiões. A esse respeito, lembra a polêmica sobre a criação da primeira rádio nacional, onde o Rio de Janeiro defende a Roquete Pinto, registrada em 1922, quando a Rádio Clube do Recife já o fizera três anos antes.

Zero Quatro não leu A Pré-História do Samba. “Não conheço a tese do Bernardo. Sobre a história do samba, minha maior referência é o ensaio de Hermano Vianna, O Mistério do Samba, de onde vem o mesmo título da música que gravamos no CD Por Pouco. O livro procura desvendar os motivos por que o sambista era perseguido e acabou se relacionando com outros segmentos da sociedade até se tornar a própria referência do Brasil como nação”.

Numa coisa Fred Zero Quatro concorda com Siba Veloso, músico que há pouco lançou trabalho fora do grupo Mestre Ambrósio, o Fuloresta do Samba, CD que tem a participação de mestres de sambada de Nazaré da Mata, município da Zona da Mata Norte pernambucana. Para ambos, a palavra samba recebe diferentes conotações em várias partes do Brasil. No interior ela designa festejo, brincadeira; pode ser um folguedo, um ritual religioso ou simplesmente algazarra. “A palavra samba é central para entender a cultura brasileira”, avalia Siba, para quem o samba é, acima de tudo, um momento de encontro das pessoas através das festas de rua, presentes em todo o Brasil.

“Esses encontros e confraternizações através da dança e da música na rua geraram vários ritmos e suas nuances partiram das influências étnicas que sofreram”. Para Siba, também, todo coco é samba. “Caboclinho, maracatu e coco se constituem samba na Zona da Mata”. Há treze anos pesquisando e convivendo com os mestres de maracatu rural na região, o músico ressalta que lá o sentido mais amplo da palavra ocorre quando dois ou mais grupos de maracatu se encontram para uma sambada, onde cantam, dançam e enfrentam os rivais em desafios poéticos, alguns deles irmanados com o repente. “Por contingências históricas, políticas e econômicas, o samba urbano carioca passou a ser considerado de maior relevância. Mas a questão da legitimidade não me preocupa. Para mim, em todo lugar o samba é legítimo”.

Nas pesquisas musicais que empreende, Siba Veloso encontra conexões ricas entre gêneros diversos. Ele afirma, por exemplo, que o samba rural paulista de hoje está bastante ligado ao maracatu rural pernambucano de 40 anos atrás. Encontra elementos de união entre o boi de zabumba do Maranhão, o maracatu rural local e o samba carioca.

Ainda que Siba apenas tenha ouvido falar do livro de Bernardo, diz que se a pesquisa dele está ocupada em revelar a contribuição indígena na formação da música nacional, já cumpre uma importante função cultural ao tirar o leitor de uma perversa ignorância sobre o assunto.

Na opinião do etnomusicólogo carioca Carlos Sandroni, entre as contribuições de A Pré-História do Samba, a que ele considera mais interessante é o registro de grupos recifenses que se autodenominavam de samba, no início do século 20. Radicado no Recife há cinco anos, onde atua como professor de graduação em Música e pós-graduação em Antropologia na UFPE, além de coordenar o núcleo de Etnomusicologia da mesma universidade, Sandroni é autor de Feitiço Decente, Transformações do Samba Carioca, 1917-1933 e aponta defeito estrutural na história do samba.

“De fato houve uma concentração de produção de pesquisas no Sudeste e os estudos sobre música popular publicados há algum tempo estavam focados nas manifestações desta região. Hoje, há verdadeira consciência da necessidade de ampliação das áreas de pesquisa e a existência de um núcleo de etnomusicologia na UFPE é um testemunho disso. O que não acho justo na pesquisa de Bernardo Alves é a acusação de preguiça por parte dos pesquisadores que o antecederam ou mesmo a afirmação de que tenham agido de má fé”.

Sandroni afirma ser procedente a pesquisa de Bernardo, na qual identifica méritos indiscutíveis. Entretanto, faz um senão ao trabalho: “O problema é que ele confunde elementos diferentes que têm o mesmo nome. O samba do século 19 certamente não se constitui o mesmo ritmo do samba do século 20, assim como não podemos afirmar terem a mesma raiz”.

Fonte: Adriana Dória Matos

2 comentários:

  1. Vamos ser honestos pelo menos com a nossa cultura, não é dificil achar dados confiáveis até mesmo na internet que os primeiros registros do samba ocorreram com os escravos e descendentes do reconcavo baiano, de onde foi levado para o rio de janeiro no inicio do século passado, é muito fácil reinvindicar aquilo que nao se tem a propriedade, dificil é assumir que este genero musical conhecido em todo o mundo é NORDESTINO.

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  2. Maravilhoso documentário...
    Muitas pessoas não sabem da verdadeira historia!!!
    Parabéns pelo trabalho.

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