Samba, Pagode e Cerveja


Um quartinho de cana, uma cerveja e um prato de arrumadinho para acompanhar o ritmo da roda de pagode. A voz de Alcione ecoa no microfone, enquanto os clientes vão ocupando as mesas de plástico amarelas espalhadas pela rua. É César Nascimento quem canta, já conhecido por interpretar as músicas da cantora nas sextas-feiras. Didi, o dono do bar, fica no caixa, conferindo as contas que chegam e os pedidos que saem, sempre cercado pela família. No colo, a bisneta Beatriz enche o comerciante de cheiros. No balcão, a filha Vera cuida das comidas e das bebidas, enquanto a nora Socorro atende os clientes. Os netos perambulam pelas mesas e pelo corredor.

O Pagode do Didi fica num beco no Centro da cidade, no bairro de Santo Antônio, por trás da Delegacia de Polícia Civil da Rua Siqueira Campos, e abre de segunda a sábado — domingo é dia de igreja. Por volta das nove horas da manhã aparecem os primeiros chegados, pedindo uma dose de aguardente para se livrar do jejum. Ou uma lapada de “pau dentro”, especialidade do bar. A receita de cana misturada com ervas é servida com uma cesta de frutas geladas, chamada de pomar. Didi cozinha desde as sete. Mal acorda e já vai para o bar preparar os tiragostos. Moela de galinha, guizado, arrumadinho, caldinho de feijão e de cebola. Tem 69 anos e só arreda o pé por volta da meia-noite, quando vai todo mundo embora.

Quando abriu o bar, em 29 de julho de 1981, Valdemir de Sousa não tinha um cliente. Já havia outros bares no beco, que viviam cheios, mas não atraíam a clientela que ele queria. “Eu sentava lá dentro, com meu violão, e começava a cantar MPB, seresta, tango. Aí foi começando a juntar o pessoal que gosta de música”, conta Didi, que ganhou o apelido na infância, um resumo carinhoso de Valdemir. Quando chegava gente que só queria beber, ele dava logo um jeito de expulsar. “Deixei de vender a meiota (meio copo de cana), que era bem barata, e passei a vender só o quartinho (copo cheio)”, explica a estratégia. “Meu pagode é seleto, eu trouxe a elite para cá”.

O ritmo deu cara ao lugar depois que a banda Fundo de Quintal estourou, no Rio de Janeiro, popularizando o pagode. “O que eu tocava era Vinicius, Toquinho, Chico, Gil, Caetano”, lembra Didi. Foi quando um amigo que vendia vinil chegou oferecendo um disco de Jorge Aragão. “Eu relutei, disse que não queria de jeito nenhum. Mas ele insistiu, disse que eu ia gostar, e eu comprei por um real”.

Didi começou a chamar a galera do samba para fazer som no bar. Levavam pandeiro, cavaquinho, banjo, e desatavam a cantar os novos sucessos no microfone. Era gente jovem, animada. “Dessa vez, tive de dar um jeito de expulsar os seresteiros”, confessa. “Se a cerveja custava R$ 3, eu vendia a eles por R$ 5”. E os músicos foram mudando de cara, assim como o bar. No começo, não tinha nem nome, só alvoroço. “O povo ficava falando: vamo pro pagode do Didi, vamo pro pagode do Didi”. Com o som consolidado, um amigo decidiu pintar o letreiro do bar. Gente de todo canto já tocou por lá. Arlindo Cruz, Fundo de Quintal, Bezerra da Silva, Só pra Contrariar. “Se não passar por aqui, não é autêntico pagodeiro”, gaba-se Didi.

Na quinta-feira, o repertório dá lugar ao samba de raiz. “Todo mundo se junta, canta os sambas antigos… Isso há mais de vinte anos”, conta Hilton de Oliveira, 70 anos, vocalista da escola de samba recifense Gigante do Samba e amigo de Didi desde moço. “Ele tocava guitarra na época, tinha uma banda de ieiê — conhecido como brega hoje em dia. E eu já fazia samba”, lembra. “Depois ele se animou, começou a tocar cavaquinho também”.

Quem também frequenta o bar desde o começo é o sambista Belo Xis, de 68 anos, 40 vivendo de música. “Didi trouxe para o Recife as rodas de samba do Rio de Janeiro. Antes, a gente tocava nas casas, nas escolas de samba, não tocava na rua. Por isso ele se tornou referência na cidade”. Ele conta que viu muito menino novo começar no samba nas rodas que Didi formava. “Lá tem a possibilidade de todo mundo chegar. Quem quiser canta, pega um instrumento para tocar. Didi entrou para o samba dando esse espaço, essa liberdade”.

O gosto pela música começou dentro de casa, ouvindo o pai tocar o violão. Didi tinha uns sete anos de idade e morava com a família no bairro da Iputinga, no Recife. “Meu pai nunca quis me ensinar. Eu mesmo pegava o violão, ficava imitando umas notas que ouvia. Ele não queria que eu virasse músico”. Não teve jeito. Didi seguiu tocando. Chegou a ter aulas no Conservatório Pernambucano de Música, mas não concluiu o curso. Hoje, apresenta-se eventualmente no próprio bar.

O garoto começou a trabalhar aos 14 anos na fábrica de gases industriais White Martins. Tinha que ajudar com algum dinheiro em casa. “Eu nunca fui mole para trabalho, não. Trabalhava onde precisassem de mim. Era datilógrafo, almoxarife, auxiliar de escritório”. Passou por várias outras empresas até chegar na Fratelli Vita, depois vendida para a Brahma. “Fui notista, remessista, fiz estatística de produção”, enumera. Conta que pediu demissão depois que o colocaram para trabalhar no escritório e acabou perdendo as horas extras que ganhava.

Era final dos anos 1970 quando foi trabalhar no restaurante Adega da Mouraria, no bairro de Santo Antônio. Ajudava na contabilidade. “Só tinha elite, gente da alta. Eu conheci esse pessoal todo”. Quando o restaurante fechou, decidiu abriu, bem em frente, o bar que mantém até hoje. Ainda se vê, no lado oposto da calçada, os azulejos portugueses que davam cara à Adega. “Quem me ajudou a montar o bar foi o senhor Cleris Batista Rosar, que era meu chefe na época da Fratelli Vita. Ele me deu tudo quando eu comecei. Me deu as mesas, as cadeiras, e toda a primeira remessa de bebidas”. Conta. “Eu só mereci isso tudo porque sempre trabalhei muito. Fiz de tudo para ser um bom funcionário em todos os lugares que trabalhei”.

Aos poucos, foi montando o bar junto com a esposa, Sônia Laurentino, com quem foi casado por 42 anos. Tiveram três filhos: Maria Verônica, de 44 anos, Zé Carlos, de 46, e Ricardo, 43. “Foi a esposa de Didi que inventou aqui o caldinho de cebola, um dos mais pedidos até hoje”, diz Socorro Fonseca, nora de Didi, casada com o caçula. “Ela era muito bonita, dava graça e força a isso tudo”. Sônia faleceu há cerca de cinco anos, de um câncer no fígado.

Morreu sem saber dos três filhos que o marido teve fora do casamento, duas meninas e um menino. “Depois que eu abri o bar foi que eu fiquei namorador”, entrega Didi. “Minha mulher só vinha comigo durante o dia, me ajudava com as comidas. Quando ela vinha de noite, normalmente nos aniversários da gente, era muito cheiro pra cá, abraço pra lá, as mulheres tudo doidinha por mim. Ela morria de ciúme. Mas foi culpa dela se eu a traí. A mulher tem que estar sempre linda para o seu marido, senão aparecem as novinhas e ele vai”. Com um escapulário prateado no pescoço, Didi vai às missas da Igreja de Santo Antônio todo domingo.

 A Ave Maria que anuncia na rádio o fim do expediente está sintonizada com as primeiras batucadas. É sexta-feira e os clientes largam do trabalho direto para os bares. No Didi, o pagode começa cedo. É o sol se pondo e os músicos chegando para animar a roda. “Venho para cá toda sexta-feira, há 18 anos”, diz o mecânico Genival José dos Santos Júnior, de 40 anos, enquanto conversa com Vera no balcão. “Avisei minha mulher logo quando a gente casou: a sexta-feira é minha. Ela nem reclama mais”.

O som costumava tocar mais alto. Quando instalaram uma delegacia ao lado, a fiscalização endureceu. O equipamento chegou a ser apreendido, e o dono, detido. Na Justiça, correm cinco processos contra o bar, movidos pela delegacia, devido ao excesso de barulho. “Em cima fica escrito assim: ofensa à sociedade. Como é que pode ser ofensa se a sociedade vive aqui dentro?”, reclama Didi.

No prédio onde hoje está a delegacia funcionou a Secretaria de Educação de Pernambuco. De 2007 a 2010, o titular da pasta era Danilo Cabral (hoje secretário estadual das cidades). “A gente fazia todo happy hour lá. E alguns eventos também: confraternização de fim de ano, festa de São João, eu já fiz vários aniversários meus lá”, conta. Danilo adora samba e pagode e acabou se aproximando de Didi. “Ele recebe todo mundo de braços abertos. E o espaço é extremamente democrático, vem gente de todas as faixas sociais, de todas as idades, é a marca dele”.

Numa mesa próxima ao bar, uma família animada canta todas as músicas do repertório. Jairo Nascimento, 47, e Rosemary Fernandes, 48, são os pais de César, que se apresenta naquela noite. “Fui eu que trouxe ele para cá, para ele começar no samba. Queria que ele ficasse famoso, começasse a cantar, a aparecer”, diz o pai. “A gente está fazendo a carreira dele para ele ir pro Rio ou pra São Paulo”, completa a mãe. O casal frequenta o bar desde os anos 1990. O filho, que só recebe de Didi uma ajuda para a gasolina, vai praticando o timbre de Alcione no microfone do bar.

Um pouco afastado da banda, Lima da Frigideira pega a panela —que tem seu nome gravado — e toca com faca. Os sapatos brancos, a camisa florida de botão e o chapéu de abas curtas completam a performance. “Tenho 63 anos e venho para cá desde que começou. Nem sempre toco com a banda. Prefiro ficar aqui, no meu cantinho, tocando a minha panela”.

Em 2010, Didi recebeu da Fundarpe o título de Patrimônio Vivo de Pernambuco por sua contribuição para a cultura local. Desde então, recebe R$ 900 por mês do governo, que complementa o salário mínimo que recebe como aposentado e o lucro do bar. Às vezes, leva uns calotes. “Na minha prestação de contas sempre fica faltando”, lamenta Socorro. “Minha filha já levou um pique de oito cervejas de um aleijado. Infelizmente, isso acontece o tempo todo”, diz Didi. Ora perde umas cervejas, ora uns petiscos, mas não pensa em abrir mão do bar. “Isso aqui é minha vida, minha família”.

Fonte: Revista Aurora
Texto: Camila Almeida
Foto: Bernardo Dantas

Nenhum comentário:

Postar um comentário